Criando mundos artificias por meio de simulações computacionais

Propondo uma mudança no paradigma de uso de simulações numéricas

Prof. Rafael Gabler Gontijo

1/22/20254 min read

CFD, FEA, PINN, ROM, LES, RANS, DNS e por aí vai. As siglas são inúmeras e representam diversos caminhos rumo à simulação computacional de fenômenos do universo por meio do entendimento das leis da física. Dentro desse contexto vemos diferentes interesses e cosmovisões ditando tendências, gostos e paixões dentro de um universo fascinante e promissor, movido pela criatividade e pela necessidade humana de compreender as leis da natureza para aplicar seus princípios na construção de novas tecnologias que visem resolver problemas da sociedade.

Dentro desse entendimento, o procedimento científico padrão para criação, desenvolvimento e validação de novos métodos (tecnologias) utilizados para fins de simulação computacional sempre seguiu o seguinte racional:

1 - Estudar as leis da física que regem o fenômeno;

2 - Representar essas leis por meio de equações matemáticas;

3 - Analisar possíveis caminhos de solução aproximada dessas equações, que variam em função do grau de complexidade do sistema de equações governantes de determinado fenômeno;

4 - Proposição de um método de solução;

5 - Implementação do método por meio da escrita de um programa de computador;

6 - Definição de testes a serem utilizados para validar a implementação e o método;

7 - Realização de simulações e comparação com resultados experimentais ou analíticos em certos limites assintóticos;

8 - Validação do código;

Uma vez validado, este programa pode ser usado para simular outros cenários físicos de interesse tecnológico. Nesse ponto, o que costuma ocorrer é o seguinte: empresas criadoras de programas de simulação passam a vender licenças caras e para isso precisam convencer seus clientes da qualidade e aplicabilidade de seus simuladores, mas sem dar acesso ao cliente ao código-fonte. Com isso, desenvolvem um simulador caixa-preta voltado à simular cenários adequados aos interesses comerciais. Consequentemente, 99% da comunidade da simulação numérica orbita em torno de usar simulações para coisas que já existem. É um mundo prático capitalista utilitarista.

Tem um paradigma que gosto de adotar nesse campo e que vai no sentido inverso: e se pudéssemos usar a simulação computacional como um laboratório do mundo para recriar experimentos numéricos que seriam praticamente impossíveis de serem realizados no mundo "real" apenas para estudar a dinâmica de certos mecanismos físicos? Um exemplo de aplicação dessa lógica pode ser ilustrado no vídeo a seguir, obtido por meio de simulações computacionais executadas por um código que venho escrevendo em FORTRAN desde 2009 quando iniciei meus estudos de Doutorado.

Esse programa, chamado SIMMSUS, tem seu código aberto disponibilizado para quem quiser vê-lo no repositório do Laboratório de Computação Científica em Escoamentos Complexos da UnB (https://github.com/lcec-unb/simmsus). Sintam-se à vontade para baixar o código, estudá-lo e melhorá-lo.

O que esse vídeo ilustra é um fenômeno físico impossível de ser reproduzido em laboratório e que talvez não possua nenhuma aplicação prática imediata, mas que serve como um racional para o entendimento de mecanismos físicos importantes no campo de suspensões líquido-sólido de partículas magnéticas como ferrofluidos ou suspensões magneto-reológicas.

Nesse vídeo vemos como um arranjo regular e ordenado de 1000 esferas densas, imersas em um líquido viscoso, se comportaria sob a ação da gravidade numa caixinha retangular sujeita à condições de contorno periódicas, o que significa que uma partícula ao cruzar a parte de baixo da caixinha retorna à parte de cima por exemplo e o mesmo para qualquer uma das faces do cubo de simulação.

Na imagem da esquerda temos partículas não magnéticas enquanto na direita as partículas são na verdade pequenos ímãs esféricos permanentemente magnetizados com momentos de dipolo ordenados e alinhados inicialmente na mesma direção inicial (perpendicular à gravidade).

O modelo matemático implementado no código considera o efeito do deslocamento do líquido em torno das esferas. O que ocorre é que cada esfera ao se deslocar no líquido acaba por induzir um micro escoamento que perturba as vizinhas e assim sucessivamente. Esse mecanismo é chamado de "interação hidrodinâmica". Esse setup numérico foi concebido para estudar o efeito combinado de interações hidrodinâmicas e magnéticas em suspensões magnéticas. Nas animações é possível perceber que sob condições estritamente controladas as interações hidrodinâmicas sozinhas não são capazes de quebrar o ordenamento no sentido transversal à gravidade enquanto o efeito combinado de interações hidrodinâmicas e magnéticas induz a um forte efeito de mistura da suspensão.

Esse esquemático pode ser estudado para aumentar nosso entendimento de fluidos magnéticos, usados em diversas aplicações como tratamento de câncer, controle de troca térmica em ambientes de microgravidade e até mesmo remediação de derramamento de petróleo em oceanos. Mas o que quero chamar atenção aqui não são as aplicações e sim a possibilidade de usar um simulador como ferramenta de estudo do mundo criando reinos artificiais impossíveis de serem replicados sob condições controladas em laboratório para investigar como a natureza se comporta, a fim não só de controlá-la, mas principalmente de se encantar com ela. Desse problema inventado poderíamos formular perguntas como: quanto tempo leva para a ordem se desorganizar nesse tipo de sistema? como esse tempo varia em função da intensidade das interações magnéticas? o que aconteceria com esse sistema se aplicássemos um campo magnético externo? poderíamos controlar esse efeito de mistura e aumentar a dispersão do sistema com campos magnéticos rotativos? isso poderia ser usado como uma espécie de liquidificador magnético para homogeneizar a distribuição de temperatura em contextos de tratamento de tumores por hipertermia induzida por campo magnético?

Todas essas perguntas são perguntas de interesse científico e passíveis de serem respondidas por meio do uso dessa ferramenta de simulação. É um caminho inverso ao usualmente empregado na indústria comercial de softwares multi-física. Aqui não importa tanto a aplicação, mas a possibilidade de deixar sua imaginação fluir na construção de mundos artificiais que vão te encantar e te ensinar muita física.

Prof. Rafael Gabler Gontijo